O episódio da rola

Há quem se queixe de que vive num prédio cheio de pessoas velhas. Daqueles apartamentos ladeados pela terceira idade e que cheiram a uma mistura de mofo e naftalina.
Queixam-se que não podem fazer o mínimo barulho, um ruidinho que seja, porque qualquer eventual ouvido mais tísico, sensível e octogenário acusará o toque. É complicado... Mas estou a ser injusto - pode perfeitamente ser uma família que tem miúdos pequenos e quer que estes adormeçam, ou simplesmente pessoas que prezam uma certa tranquilidade e sossego depois das 22h. Acho perfeitamente compreensível e aceitável. É uma questão de civismo.










Eu recentemente tenho vivido uma situação no mínimo caricata. Eu "queixo-me" (com um sorriso) de que vivo num prédio com malta "demasiado nova". Ou por outra, a água que corre na torneira do meu prédio deve estar carregadinha de estrogénio e testosterona. A libido impera aqui no burgo.










Da janela do meu quarto costumo ouvir com frequência pombos, passarinhos e passarecos a cantar. "Piu piu" para ali, "piu piu" para acolá. Mas há uma rola cujo piu piu se assemelha muito a um gemido. A um esgar de prazer. E não se coíbe de cantá-lo e expressá-lo a seu belo prazer. Da primeira vez que a ouvi, soou-me a outra coisa. Mas depressa me apercebi que era eu que tinha uma imaginação demasiado fértil. Com o decorrer do tempo habituei-me, assimilei e passei a ignorar.










Ora uma destas noites, sou acordado com o que parecia ser a sacrista da rola a cantarolar a alto e bom som. Mas às 4 da manhã até uma rola tem juízo. E estremunhado, começo a decifrar mais do que os habituais gemidos e esgares de prazer da rola. A rola estava possuída!! Falava. FALAVA!! Falava, gritava, gemia, "ui, ai, assim não Nini que me magoas", “...ai que bom", "pára, pára, ahhhhhhhhhhhh", etc...










Conclusão: no meu prédio co-habito com um casal, meio rola, meio coelhinho, super criativo, que gosta de aviar prego a qualquer hora, faça sol ou faça chuva. Desde esse dia que me apercebo que estes meninos são assíduos no acto. Ficava feliz por eles não fosse sentir que estava tipo voyeur à força, a assistir ao acto. Fazem tanto barulho. Ela grita tanto, tanto, e a coisa é tão puxada que se ouve a cama e o mobiliário a passear de rojo pela casa. O tipos estão nisto horas às vezes. Não têm descanso. (E eu também não.)
A minha esperança é deixar gradualmente de me sentir desconcertado com isto e passar à fase do “saudável convívio” com a situação.










Já cheguei a convidar amigos para virem assistir ao "concerto" do fim de tarde. As chamadas "matinés". Não são diárias e regulares, mas frequentes e imperdíveis. As sessões são “free of charge” para os interessados. Só peço que avisem com antecedência porque a lotação é limitada. E já agora tragam croquetes e uns bolinhos, porque isto às vezes dá fome.










(...) juro que não estou a mentir: mas posso informar-vos com alegria que o espectáculo de hoje teve início há breves instantes! Quem não chegar a tempo pode apanhar a sessão da madrugada. Eles normalmente repetem.

(as ilustrações são do Jorge Colombo)